06 agosto 2011

O coração da Ave liberta é mudo

Quando era criança tentei subir ao topo do mundo com as mãos nuas e com os pés descalços, mas o mundo escorregava e eu teimava demais, acabando por cair de costas sobre a superfície espinhosa que forrava todo o sopé da montanha.
Percebemos  que subir é difícil, que cair magoa e que, por vezes, chegar ao topo é mesmo impossível. Percebemos que não somos capazes de qualquer coisa. Percebemos isto tudo não quando somos crianças, não quando tentamos ser adultos, mas quando já não o somos , quando já não tentamos crescer, quando estamos assustados com o próximo passo. Aí finalmente compreendemos que somos apenas Homens fracos e impotentes, vulneráveis às opiniões, atingíveis e mortais, a um passo da queda sem qualquer proteção.
Não, não dói cair em criança. O chão, apesar de espinhoso, parece-nos penas deitadas sobre o mar embaladas na doce batida do oceano. A queda é lenta e quando atingimos o sopé, a nossa imaginação transforma-o em almofadas frescas pela noitinha antes de serem tocadas por alguém. Porém, quando já não somos infantis, a vida assusta-nos, os nossos sonhos parecem relativos, ou pelo menos as possibilidades de os realizarmos. Sim, quando já somos meras crianças adultas camuflamo-nos sob a tenra idade que apesar de denunciar a fraca possibilidade de sermos pequenos, esconde qualquer chance de sermos mais do que somos, protegidos.
E é nessa altura que o salto nos é requerido, pedem-nos que abandonemos o nosso pequeno casulo, exigem que nos tornemos borboletas grandes e majestosas, sem medos, infantilidades ou receios, atiram-nos do abismo e olham à espera que voemos, porque se não o fizermos caímos simplesmente e nunca mais seremos capazes de subir até ao estado de vida.
A ave que esteve presa na gaiola e que desejava sair, desejava conhecer o mundo, tem então a tão almejada oportunidade e quando a tem o medo assola-a de tal forma que a pequena portinhola parece-lhe os portões grossos e intransponíveis do purgatório. A ave afasta-se da saída ou enfrenta-a, contudo qualquer que seja a sua decisão a sua vida nunca mais será a mesma. O coração da ave que foi liberta é mudo, porque já ninguém o quer ouvir, o quer perceber, mas o coração da ave que decidiu ser cobarde simplesmente mirrou, porque sem coragem não somos quase nada e os nossos corações simplesmente são pó, do mesmo pó do qual fomos feitos.
É necessário escapar da nossa própria emoção, fugir também da nossa racionalidade, já que no final nem a racionalidade nem a emoção nos vão resgatar, vão antes deixar-nos escolher livremente, sem passado, sem presente e sem futuro. Vão colocar-nos numa gaiola de estanho, abaulada e pendurada na trave do teto reto, de onde se avista a janela aberta e a cortina posta de lado deixando escapar a livre e bonita paisagem que se mostra mesmo diante dos nossos olhos. A pequena porta da prisão estará finalmente aberta, como a infância abre a porta para a idade adulta, e neste momento as asas serão fortes o suficiente. A ave tomará então a decisão e ao voar janela fora, em direção a todo o seu futuro, a todas as suas verdadeiras oportunidades, vendo pela primeira vez o sol sem ser coado pela proteção da gaiola, o seu coração será repentinamente mudo ao ouvidos do mundo, estando agora a Avezinha e cada um de nós completamente sozinhos no meio da vida e da destreza dos momentos que nos aguardam.
O coração da ave liberta é, agora, apenas um coração calado, cego e incapaz de denunciar a sua verdadeira infantilidade, porque por mais que cresçamos seremos sempre as mesmas crianças que  ingenuamente tentavam subir a montanha sem ajuda, com as mãos bem nuas e os pés tão alegremente descalços!

Inspirado na Vida
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