O Último Corte
Sentada
no último daqueles catorze degraus que a tinham protegido por dezoito anos,
sentia o ar frígido de uma madrugada ainda pouco amadurecida.
A
porta estava aberta enquanto o transporte derradeiro era preparado para a
viagem mais díficil da sua vida. Os faróis gastos do automóvel iluminaram a
escuridão perfeita daquele horário extraordinário. Estava na hora de partir.
Nunca
aquela entrada lhe tinha parecido tão familiar. No cimo do quinto degrau lá estava
o canino da família pronto para mais uns beijos. E mesmo no segundo o felino
que constituía parte da sua alma original agora cortada, retalhada e queimada
pela distância por ela mesma escolhida.
Um
último momento com as suas representações animais e, por fim, o embate com o
cheiro típico de uma manhã prometida. Cheirava a chuva, vento e a folhas
outonais partidas. Setembro nos Açores cheira sempre assim: àquele odor irresistível de casacos e gorros nunca usados na ausência de outros sinais deliciosos que não
o orvalho forte.
Entrara
no carro que seguia pelas ruas adormecidas, agora levemente clareadas pelo belo
nascer de sol que tantas vezes comteplara como pináculo de uma noite
maravilhosa de insónia.
Mais
um lugar conhecido, mais um rasgão no berço familiar, mais uma despedida a que
ela mesmo se julgara. Sentia uma coragem liquída a abstrair-se de si e,
simultaneamente, sabia que era tarde de mais para recuar.
O
carro que serpenteara pelo amor familiar até então desconhecido, parou no lugar
das partidas e lá se encerrou um último estádio.
Adeus
bagagem, que agora não há volta a dar e, meia hora depois, adeus, pedaços de
mim, que agora se parte pela primeira ou segunda vez o meu coração ressequido
por estes últimos dias de antecipação.
Sair
de casa parece sempre uma expecativa entusiasmante manchada pelos momentos
derradeiros de verdadeira aflição. Nasce uma dor física que exige mais alguns
momentos de preguiça infantil e nos faz querer permanecer naquele casulo
confortável que nos albergou por tantas manhãs de outono em que o ritmo
agressivo da água incessante nos alegrara.
Restam-nos
recordações daqueles segundos de carinho e dos sabores que agora se deixam.
Sobra um coração mais pequenino e um nó na garganta que parece persistir para
um eternidade insuportável. Brota um novo par de asas capazes de devorar
múltiplas horas por mais uma centelha daquele amor.
Inspirado na vida,
IP
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